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Thursday, March 13, 2014

Presuntos ibéricos

O Rio sempre foi morada de estrangeiros. Da escritora Elizabeth Bishop ao conspícuo ladrão de bancos Ronald Biggs, esta cidade manteve a graça de atrair os famosos, os degenerados, os dandis, os artistas, as beldades e os curiosos de todo o mundo


Hoje vi o Carlos na Rua das Acácias. É uma rua com árvores antigas, onde o cheiro adocicado e verde do mato se entorna sobre tudo. É um bom lugar para se conversar com um amigo ao cair da tarde. Por isso, levantei o braço e chamei-o. Conheci o Carlos há umas semanas, quando nos cruzámos no bairro passeando os respectivos rafeiros. Nascido e criado na capital espanhola, Carlos é adepto do Real Madrid. Como tal, bastaram alguns segundos para que estivéssemos a falar de Cristiano Ronaldo e de Mourinho, criando aquele tipo de cumplicidade masculina que só o futebol e alguma má vida permitem. Carlos conhece a marcha notívaga de Madrid, cidade onde morei alguns anos e sobre a qual conversámos com saudades, mas certos de que a fila anda, os tempos mudam e Espanha passou de oitava economia do mundo para o país da UE com maior taxa de desemprego - um quarto da população ativa, com especial incidência entre os mais jovens.
Esta tarde, feliz de reencontrar Carlos, cruzei a rua e estiquei-lhe a mão enquanto os cães se indagavam com os seus narizes curiosos. Não me pôde cumprimentar porque tinha a mão direita enfaixada. Contou-me que tivera um azar e que fora operado, com direito a alguns parafusos e vários pontos. Carlos faz parte dos 300 mil espanhóis que, desde 2011, abandonaram o seu país procurando emprego e uma vida menos delapidada pela crise.
O Rio sempre foi morada de estrangeiros. Da escritora Elizabeth Bishop, mulher da arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, ao conspícuo ladrão de bancos Ronald Biggs, esta cidade manteve a graça de atrair os famosos, os degenerados, os dandis, os artistas, as beldades e os curiosos de todo o mundo.
Mas nunca, como agora, houve tantos estrangeiros interessados em viver aqui. O Rio está ainda muito longe do cosmopolitismo de Nova Iorque ou de Londres, no entanto, foi capaz de atrair gente dos países (alegadamente) desenvolvidos, não apenas pelo seu charme, mas porque oferecia empregos bem pagos e um estilo de vida que competiria com as grandes metrópoles. O Rio, capaz de atrair engenheiros americanos ou arquitetos europeus, deixou de ser, como em tempos idos, destino de imigrantes que chegavam pobres e sem sapatos.
O Brasil tem falta de mão de obra especializada, precisa destas pessoas, e muitas destas pessoas precisam de novas perspetivas, um emprego, uma reviravolta nas suas vidas. Como Carlos, que chegou a ter dois apartamentos em Madrid e que agora, a pagar um empréstimo demasiado alto, e há mais de um ano desempregado, se mandou para o Rio de Janeiro.
Mas o Rio não costuma ser fácil para quem chega, e a ilusão de uma cidade moderna e eficiente, incrustada numa inigualável paisagem tropical, com gente alegre e tudo sempre numa boa, começa a desfazer-se assim que os recém-chegados tentam tratar da sua vida - documentos, casa, emprego, visto, internet, telefone - e percebem que, apesar de ser a sexta cidade mais cara do mundo, a qualidade de vida não é diretamente proporcional aos preços que se pagam. 
Percebi que Carlos estava num desses dias em que tudo correra mal. Além disso, com a mão naquele estado, o seu vigor inicial desbotara um pouco. E também não ajudava a sensação de caos e de vazio da cidade na ressaca do Carnaval - uma cidade de pantanas e emporcalhada, com toneladas de lixo na rua e na praia, e um insuperável cheiro de mijo, cerveja morna e suor, que precisará de mais do que uma forte chuvada para desaparecer de vez.
Ele disse: "Sou um tipo calmo, nunca me senti assim. Mas tenho 42 anos e estou sem fazer nada há um ano e meio... Não esperava estar aqui com esta idade..."
Percebi que, além do Real Madrid, do gosto por séries como "Breaking Bad" e "The Wire", ou do facto, não dispensável, de que o seu clube em Portugal é o Benfica, havia algo mais que nos aproximava - um estado de alma e uma cronologia que se assemelham apesar (ou por causa) das fronteiras e da língua. Somos os primeiros filhos das democracias ibéricas; somos descendentes de gerações mais pobres e mais ignorantes, crescemos na sombra do passado de uma ditadura, mas a nossa vida foi sempre a subir, livre e alavancada pelo dinheiro e as diretivas civilizacionais da União Europeia. Somos provavelmente os ibéricos mais europeus de sempre, meninos do Erasmus, do Interrail e das viagens aéreas low cost. Por isso, quando Carlos disse "Não esperava estar aqui com esta idade", não se referia ao Rio de Janeiro, mas à evidência - agora incontornável - de que não imaginávamos um dia ser emigrantes como foram os nossos pais e avós. 
Talvez pensando na ironia da situação, e na velocidade com que mudam os fluxos migratórios, Carlos retirou importância aos seus problemas: "Bem, eu estou apenas a passar por aquilo que os brasileiros passaram em Espanha." Depois retificou: "No, ellos lo pasaron peor". Porque, apesar de tudo, ambos sabemos bem que ser emigrante europeu agora, no Brasil, é bem mais fácil do que ser um brasileiro buscando a vida na Europa nas duas últimas décadas.
Despedimo-nos com a promessa de uma cerveja para breve. Mas ficaram-me na cabeça as suas palavras - mais até a sua postura corporal - quando me disse que as coisas são assim, que mesmo que não esperássemos esta vida, ela é afinal a vida que temos, e há que aceitá-la e ir adiante. É que depois do falhanço do sistema que nos criou (e preparou) como somos hoje, depois da apreensão, da frustração e da revolta, a vida encarrega-se de nos ajustar, afasta-nos das emoções mais fortes e aproxima-nos da verdade.
E a verdade, por enquanto, parece ser esta: aquilo que vivemos e viveremos aqui, para o bem e para o mal, é agora muito mais decisivo nas nossas vidas do que o momento em que tudo ruiu. Está cada vez mais claro que terminou o luto. Começaram as segundas núpcias.

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